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Do
coração de uma mulher
Lucilene Machado
Musica : Judy
Collins: Send in the clowns
A bem da verdade, não sou essa
mulher fatal que você pensa que eu sou. Aquelas histórias de sedução
foram todas inventadas e esse ar superior, de quem sabe lidar com a
vida, é apenas autodefesa.
Aquelas frases filosóficas, foram
só pra te impressionar, pra te passar essa ilusão de intelectual... na
verdade eu ainda nem sei se acredito nos valores que me ensinaram,
quanto mais em frases feitas e opiniões formadas!
Senta aí, vai! Deixa eu tirar os
sapatos, desmanchar o penteado, retirar a maquiagem... quero te mostrar
que assim de perto não sou tão bonita quanto pareço, por isso uso todos
esses artifícios. É que no fundo tenho um medo terrível de que você me
ache feia, de que você encontre em mim uma série de imperfeições.
Sabe, não quero mais usar essa
máscara de mulher inatingível, de mulher forte com punhos de aço... No
íntimo me sinto uma pequena ave indefesa, leve demais para enfrentar o
vento, e, deseja ficar no aconchego do ninho e ser mimada até
adormecer.
Olha pra mim, às vezes minha
intimidade não tem brilho algum e você terá que me amar muito para
suportar essa minha impotência.
Deixa eu tirar o casaco, tirar o
cansaço... essa jornada dupla me deixa tão carente... A convicção de
independência afetiva? É tudo balela! Eu queria mesmo era dividir a
cama, a mesa, o banho... Queria dividir os sentimentos, os sonhos, as
ilusões... um pedaço de torta, uma xícara de café, algum segredo...
Ah, eu tenho andado por aí, tenho
sido tantas mulheres que não sou! Quantas vezes me inventei e até me
convenci da minha identidade. Administrei minha liberdade. Tomei
aviões, tomei whisky... troquei a lâmpada, abri sozinha o zíper do
vestido... decidi o meu destino com tanta segurança! Mas não previ que
na linha da minha vida estivesse demarcada uma paixão inesperada.
Agora, cá estou eu, toda atrapalhada, tentando um cruzar de pernas diferente,
um olhar mais grave, um molhar de lábios sensual... mas não sei direito
o que fazer para agradar.
Confesso que isso me cansa um
pouco. Queria mesmo era falar de todos os meus medos, "dos seus medos?"
você diria, como se eu nunca tivesse temido nada. Queria te falar das
minhas marcas de infância, dos animais que tive, do meu primeiro dia de
aula... queria falar dessas coisas mais elementares, e te levar na casa
da minha mãe, te mostrar meu álbum de retrato (eu, me equilibrando nos
primeiros passos), ah, queria te mostrar minha primeira bicicleta, com
truques. Ela ainda existe! Queria te mostrar as árvores que eu plantei
(como elas cresceram!) e todas essas coisas que são tão importantes pra
mim e tão insignificantes aos outros.
Ah, você queria falar alguma
coisa? Está bem! Antes, só mais uma coisinha: estou morrendo de medo
que você saia desta cena antes de mim, que você saia à francesa desta
história, e eu tenha que recolocar minha máscara e me reinventar, outra
vez. |